sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Você Não Ama se Não Conhece a Deus- Norman Geisler

Em seu livro Mortal Lessons: Notes on the Art of Surgery (Lições Mortais: Notas sobre a Arte Cirúrgica), o Dr. Richard Selzer descreve o seu encontro com uma jovem depois de ter removido um tumor do rosto dela. A cirurgia exigira o corte de um nervo facial, deixando um lado da boca paralisado e torto. O médico estava preocupado com a reação da mulher e do marido à nova aparência dela.
"O marido está no quarto. Ele se colocou do lado oposto da cama e, juntos, eles parecem habitar na luz noturna. Isolados de mim, distantes num mundo só deles. Quem são, pergunto a mim mesmo, ele e esta boca torta que eu fiz, que se fitam e se tocam generosamente, avidamente?
"A jovem mulher pergunta: 'Vou ficar sempre assim?'. Eu respondo: 'Sim, o nervo teve de ser cortado.' Ela concorda em silêncio com um aceno de cabeça. Mas o jovem sorri. 'Eu gostei, ficou bonitinho.'
"Na mesma hora descubro quem ele é, compreendo e abaixo os olhos. É impossível não se emocionar ao encontrar um deus. Sem se importar, ele se inclina para beijar a boca repuxada dela e estou tão perto que posso ver como torce os lábios para se acomodar aos da mulher, para mostrar-lhe que o beijo deles ainda tem valor. Lembro-me de que os deuses apareceram na Grécia antiga como mortais, seguro a respiração e deixo o prodígio envolver-me."1
Conforme sugerido pelo Dr. Selzer, o amor é uma qualidade divina. Mas não somos deuses. O amor é algo que os seres humanos precisam e expressam, mas não é a nossa natureza básica. É algo que possuímos, e não algo que somos. O amor reside em nós e opera por meio de nós mediante a presença do Espírito Santo, mas a sua fonte está além de nós. Desde que o amor é um absoluto, ele nunca muda. Portanto, a fonte suprema do amor deve ser tão imutável quanto o próprio amor. Como cristãos, identificamos nosso Deus imutável como a fonte do amor. A Bíblia afirma claramente: "Deus é amor" (I João 4:16). Em contraste com a Sua criação humana, Deus não tem amor, Ele é amor. A atividade do alvor de Deus flui da Sua natureza de amor. Quando Deus ama, Ele está simplesmente sendo Ele mesmo.
Nenhuma ética importante do amor pode evitar o conhecimento do Deus de amor revelado na Escritura. O mandamento para amar nada significa se não soubermos o que o amor é, e o significado do amor está arraigado em Deus. João escreveu, "Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor" (I João 4:8). A ética do amor cristão não é mais segura do que a sua fonte e não pode ser mais aplicável à vida do que o nosso conhecimento da Sua lei.
Como obtemos este conhecimento do amor de Deus? Há duas fontes básicas: o mundo que nos rodeia e as Escrituras. Nossa experiência do amor de Deus na criação e nos relacionamentos humanos é a fonte geral do conhecimento sobre Ele. A Bíblia é uma fonte mais especifica. Vamos considerar ambas.

CERCADOS PELA NATUREZA AMOROSA DE DEUS

A chuva de primavera cai docemente sobre a sua pequenina horta no quintal. Os pingos gotejam nas folhas e nos pés de tomate, abobrinha, alface e cenoura que prometem uma deliciosa colheita de verão. Você não consegue vencer o espanto. Há poucas semanas não havia nada ali senão terra. Você plantou as sementes, regou-as e ficou vigiando diariamente. O sol quente da primavera fez brotar as plantinhas verdes da terra úmida. Quase diante de seus olhos as sementinhas produziram boa quantidade de lindos vegetais, o suficiente para alimentar sua família e dividir com os vizinhos. Você pensa nos fazendeiros que plantam centenas de acres de cereais e outros produtos comestíveis, ganhando a vida com eles. Pensa nos pobres dos países do Terceiro Mundo que cultivam o pouco que podem, a fim de pelo menos sobreviver. Imagina então se eles também reverenciam o milagre da semente, chuva, sol e colheita.
Nossa experiência de vida neste mundo nos informa de que há um Deus que se importa com a Terra que Ele criou e com as criaturas que vivem nela. Paulo pregou aos incrédulos de Listra: Deus "não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo os vossos corações de fartura e de alegria" (At. 14:17). O salmista disse sobre Deus: "Abres a tua mão e satisfazes de benevolência a todo vivente" (Sal. 145:16). Deus prometeu a Noé: "Enquanto durar a terra não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite" (Gên. 8:22). A produtividade abundante e oportuna da terra, sua mistura agradável de simetria e contraste, sua beleza sensorial admirável, e seu desenho complexo – do macrocosmo do espaço ao microcosmo da esfera das subpartículas – é um testemunho do amor de Deus mantendo a Sua promessa através dos milênios.
Paulo falou da nossa completa dependência do Criador amoroso, lembrando aos filósofos não-cristãos na Colina de Marte que Deus "nem é servido por mãos humanas, como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais" (At. 17:25). O testemunho da natureza é suficiente para convencer cada ser humano da existência e provisão de um Deus que nos fez e cuida de nossas necessidades. Paulo escreveu, "Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das cousas que foram criadas. Tais homens são por isso indesculpáveis" (Rom. 1:20). A natureza é um testemunho constante e claro da existência de um Deus de amor.
Nosso conhecimento do amor de Deus no mundo que nos rodeia não fica limitado ao que geralmente chamamos de natureza. Deus revelou também o Seu amor por meio do amor da Sua criação humana. O apóstolo João declarou: "O amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus, e conhece a Deus" (I João 4:7). O terno amor de um pai pelo filho, o amor generoso e íntimo entre marido e esposa, e o amor perseverante e dedicado dos amigos de uma vida são evidências de que o Deus que nos criou é um Deus de amor. Toda vez que alguém serve um inválido, fornece refeições a um amigo doente, doa dinheiro ou materiais a vítimas de catástrofes naturais, ajuda um vizinho a trocar a mobília de lugar, ou faz qualquer outro serviço de amor, o amor de Deus é refletido no comportamento humano. Como cristãos, sabemos que somos instrumentos do amor de Deus para outros, pois "o amor de Cristo nos constrange" (2 Cor. 5:14). O amor procede de Deus e os que experimentam o amor verdadeiro, crentes ou não, sentem que há um Deus que se importa.
O amor em nosso mundo é evidentemente distorcido. O pecado e a doença no coração da humanidade transformaram o amor em orgulho, ódio e vingança. O conflito, a inveja e a amargura separaram indivíduos, famílias, raças, grupos socioeconômicos e nações. Todavia, o amor humano é universal. Todas as culturas têm alguma consideração pela decência e respeito nos relacionamentos humanos, como demonstrado em suas leis civis e seus códigos morais. Por exemplo, os hunos de Átila podem ter sido selvagens em seu ódio e destruição dos inimigos, mas amavam suas mulheres, filhos e amigos. A exceção talvez do mais odioso, sádico ou diabólico dos criminosos, teríamos dificuldade para encontrar um indivíduo em todo o mundo que não amasse alguém: um pai ou mãe, um irmão, um mentor, um cônjuge. O mais leve vislumbre de amor no coração humano evidencia a marca do Deus amoroso que nos criou.

PALAVRA FINAL SOBRE O DEUS DE AMOR

O conhecimento mais explícito do amor de Deus é derivado da Bíblia. Em literalmente centenas de referências de ambos os Testamentos tomamos conhecimento do amor de Deus. Alguns capítulos inteiros, tais como 1 Coríntios 13 – chamado "capítulo do amor" – , são dedicados ao amor. O amor é o tema dominante em livros como Oséias, o evangelho de João e a primeira epístola de João. Segundo Jesus, o amor é o tema supremo da Escritura. Ele disse: "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas" (Mat. 22:37-40).
No Antigo Testamento, a Lei (os cinco primeiros livros) e os Profetas (os dezessete últimos livros – Mat. 5:17; Luc. 24:27) resumem as instruções de Deus sobre como viver em relação amorosa com Ele e com outros. O resultado desses relacionamentos é descrito nos livros de história e celebrado nos livros de poesia. Quando Jesus disse "Toda a lei e os profetas", Ele indicou que o amor de Deus permeia o Antigo Testamento. Ao entregar os Dez Mandamentos, Deus prometeu amar "até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos" (Êxo. 20:6). O salmista insere repetidamente a frase: "A sua misericórdia (amor) dura para sempre" (Sal. 136:1 ss.).
Outra frase que descreve a natureza amorosa de Deus, como Ele se revelou a Moisés, é também repetida em todo o Antigo Testamento: "Senhor Deus compassivo, clemente e longânimo, e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado" (Êxo. 34.6,7; veja também Núm. 14:18; Neem. 9:17; Sal. 86:15; 103:8, 145:8; Joel 2:13).
Como indica a experiência de Jonas, o amor de Deus não fica limitado a Israel. Jonas confessou o interesse de Deus pela ímpia Nínive: "Sabia que és Deus clemente, e misericordioso, tardio em irar-se e grande em benignidade, e que te arrependes do mal" (Jonas 4:2). As boas-novas do amor eterno de Deus permeiam o Antigo Testamento de Gênesis a Malaquias.
O amor de Deus se realiza no Novo Testamento, como visto no centro da mensagem bíblica do amor, João 3:16: "Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna". João ampliou este tema central na sua primeira epístola: "Nisto se manifestou o amar de Deus em nós, em haver Deus enviado o seu Filho unigênito ao mundo, para vivermos por meio dele" (1 João 4:9). Jesus disse: "Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém à própria vida em favor dos seus amigos" (João 15:13). O apóstolo João reforçou o pensamento, acrescentando a importância do exemplo de Cristo para nós: "Nisto conhecemos o amor, em que Cristo deu a sua vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos" (1 João 3:16).
Paulo se maravilhou por Deus ter agido em amor muito antes que soubéssemos da nossa necessidade do Seu amor: "Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores" (Rom. 5:8). O sacrifício do santo Filho de Deus para remir a raça humana pecaminosa é a quintessência do amor. Não admira que João exulte: "Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus" (1 João 3:1).
As Escrituras nos asseguram também que Deus é tenaz, e não tênue, em Seu amor por nós. Romanos 8:35, 38, 39 nos dá uma visão estimulante e encorajadora do compromisso de amor de Deus conosco: "Quem nos separará do amor de cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? [...] Porque eu estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem coisas do presente, nem do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor".
O amor de Deus ecoa por todo o Novo Testamento. Vemos o amor de Deus Pai por Seu Filho (Mat. 3:17; Mar. 9:7) e o amor do Filho pelo Pai (João 14:31). Jesus declara que Seu amor por nós tem como modelo o amor do Pai por Ele (João 15:9). Recebemos ordem para corresponder ao amor do Pai por nós, amando a Deus (Mat. 22:37) e amando aos outros (João 13:34,35; Rom. 13:8; 1 Ped. 1:22; 1 João 4:7), inclusive os nossos inimigos (Mat. 5:44). Mas, mesmo quando amamos, nossa capacidade para isso tem origem em Deus e na Sua natureza amorosa: "Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou, e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados" (1 João 4:10).

DEUS DE AMOR E DEUS DE IRA

"Espere um pouco", muitos irão interromper. "Se Deus é um Deus de amor, por que Ele criou o inferno e por que envia gente para lá?" Boa e importante pergunta. A Bíblia diz que Jesus, que amou tanto o mundo e morreu por ele, irá um dia "tomar vingança contra os que não conhecem a Deus e contra os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu poder" (2 Tess. 1:8,9). Para os incrédulos, Jesus dirá: "Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos" (Mat. 25:41). Em sua visão, João notou que "E, se alguém não foi achado inscrito no livro da vida, esse foi lançado para dentro do lago do fogo" (Apoc. 20:15). Este lugar é descrito como de tormento, do qual não se pode voltar (Luc. 16:23-26), um lugar em que "haverá choro e ranger de dentes" (Mat. 8:12). A existência de tal lugar não é incompatível com um Deus amoroso por natureza?
A resposta é não. O amor absoluto, longe de ser incompatível com o inferno, na verdade exige a sua existência. Ninguém pode forçar o amor de outra pessoa. Você escolhe amar a Deus; Ele não vai forçar o seu amor. Deus irá, naturalmente, fazer tudo em Seu poder amoroso a fim de oferecer-lhe o convite para amá-Lo. É esse o plano da redenção. Mas, quanto aos que o recusarem até o fim, Deus não violará a liberdade de eles escolherem o próprio destino. C.S. Lewis notou que só existem dois tipos de pessoas no Universo: os que dizem "Seja feita a Tua vontade" a Deus, e aqueles a quem Deus dirá "Seja feita a sua vontade". Jesus lamentou, compadecido, o desejo de reunir o Seu povo como a galinha ajunta os seus pintinhos, "e vós não o quisestes!" (Mat. 23:37). O inferno é o lugar preparado por um Deus longânimo para os que se recusam a seguir o Seu caminho. Depois de ter tentado atrai-los, Deus irá finalmente dizer a alguns: "Está bem, faça o que quiser".
Cruel? Sem amor? De modo algum. Pense um pouco: Se Deus permitisse que os incrédulos entrassem no Céu, isso seria pior que o inferno para eles. Como aqueles que detestam orar e louvar a Deus suportarão ser enviados para um lugar onde esta atividade é permanente? Se eles se sentem desconfortáveis durante apenas uma hora na igreja fazendo isto, pense no desconforto que sentirão se tiverem de continuar nessa prática para sempre. Desde que o Céu è um lugar onde as pessoas irão curvar-se e adorar a Deus, como poderia um Deus amoroso forçá-las a ir para lá quando elas não querem adorá-Lo, mas O odeiam ou O ignoram, como já fizeram nesta vida? É mais compatível com a natureza do amor divino não obrigar as pessoas a amá-Lo contra a vontade delas. Portanto, Deus é na verdade misericordioso com os incrédulos ao prover para eles um lugar que esteja de acordo com a rejeição que têm em relação a Ele.
Isto não significa que todos que vão para o inferno gostarão de estar ali. Pelo contrário, a descrição da Bíblia não deixa dúvidas de quanto esse destino eterno pode ser indesejável. As pessoas não querem ir para o inferno, mas ao recusar Cristo é para lá que vão. Esta é a razão por que devemos continuar insistindo para que os membros da família, amigos, vizinhos, colegas de escola e de trabalho se entreguem ao amor de Deus e sigam o Seu caminho. Esta é a razão pela qual advertimos os entes queridos e os estranhos das conseqüências de optar pela rejeição e seguir o próprio caminho. Cremos firmemente que aqueles que viraram as costas para Deus em ira ou apatia podem aprender a amá-Lo como nós fazemos. Todavia, Deus não forçará a ir para o Céu ninguém que não quiser estar lá com Ele. Por mais indesejável que possa ser a escolha de alguns, eles a fizeram e terão de viver com ela para sempre.
Você pode perguntar: "E se alguém que estiver no inferno mudar de idéia? Um Deus amoroso não irá livrar o indivíduo arrependido do inferno e transferi-lo para o céu – melhor tarde do que nunca?". A resposta é Não. As pessoas só estão no inferno porque Deus sabe que nunca mudarão de opinião sobre Ele. Se outras mil oportunidades na vida as fizessem escolher o caminho dEle, Deus, em amor, teria dado a elas essas oportunidades. Mas, porque Ele sabe todas as coisas antecipadamente, inclusive o fato de que algumas pessoas nunca irão mudar de idéia, Deus as deixa ir e diz: "Aos homens está ordenado morrerem uma só vez e, depois disto, o juízo" (Heb. 9:27). Deus não deixou de demonstrar Seu amor por elas. Mas, lamentavelmente, nem mesmo o amor divino as conquistou. Deus ofereceu a oportunidade para que tivessem o que há de melhor, embora permitindo que cada um escolhesse algo inferior ao melhor planejado por Ele. Deus, que é todo amor, surpreendentemente permite o supremo insulto ao Seu amor: a rejeição.
Esta descrição do amor de Deus ajuda-nos a compreender melhor a ira de Deus. A ira é o resultado do amor rejeitado. C. S. Lewis observou muito bem que o único lugar do Universo onde as pessoas ficarão livres das perturbações do amor é o inferno. O inferno é onde o amor não funciona nem atrai mais, pois não é possível conquistar ninguém ali. Não se trata de Deus não mais amar. Seu amor radiante ainda brilha, mas o efeito é totalmente diverso quando o amor é rejeitado. O mesmo sol que derrete a cera também endurece o barro. A diferença não é a fonte de calor, mas a reação do objeto aquecido.
O mesmo acontece com o amor de Deus. Quando alguém não está disposto a corresponder ao amor de Deus, surge a ira. Se você já tentou alguma vez amar alguém que não quer ser amado, tem idéia da frustração do amor de Deus. Se você, obstinada ou orgulhosamente, rejeitou o amor que outros lhe estenderam, já experimentou então um pouco do inferno. É terrível necessitar de amor e querer amor, mas, ao mesmo tempo, não se abrir para alguém que nos ama. Os incrédulos são como baldes virados de cabeça para baixo sob as Cataratas do Niágara. "Onde está o amor de Deus e o Deus do amor?", clamam eles. "Minha vida é vazia e sem significado." Todavia, eles se recusam a voltar a vida para o outro lado e permitir que a cascata do amor infinito de Deus preencha a existência deles. Deus é amoroso; Seu amor flui como uma torrente poderosa, incessante. Ele quer o bem de cada indivíduo, mas o Seu amor não pode ajudá-los se eles não desejarem o bem maior, aceitando o Seu amor.

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Há muitas maneiras de aprofundar o nosso conhecimento e experiência do amor de Deus e do Deus de amor. Desde que a criação de Deus é uma expressão permanente do Seu amor, devemos estudar e apreciar o que Deus fez. O rei Davi escreveu: "Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste, que é o homem, que dele te lembres? E o filho do homem, que o visites?" (Sal. 8:3,4). A Escritura nos convida a "considerar" o que Deus fez, olhar para a Sua marca amorosa em tudo o que nos rodeia e louvá-Lo pelo Seu cuidado amoroso.
Desde que os relacionamentos humanos refletem a natureza do Deus de amor, devemos encorajar e afirmar o amor humano generoso onde quer que o encontremos. Um adesivo num pára-choque sugere: "Pratique casualmente atos de bondade". A Bíblia diz isso da seguinte forma: "Enquanto tivermos oportunidade, façamos o bem a todos" (Gál. 6.10). Os indivíduos que amam e servem aos outros abnegadamente em nome de Cristo devem ser nossos heróis. Fique perto e aprenda deles, imitando-lhes o espírito de amor.
Acima de tudo, visto que o amor de Deus e o Deus de amor são claramente apresentados na Sua Palavra, devemos conhecer as Escrituras. Estude os atos amorosos de Deus na história bíblica, desde a criação até a redenção. Familiarize-se com as atitudes amorosas de Deus como declaradas em Seus mandamentos, nos ensinamentos de Jesus e nos escritos dos apóstolos. Sacie-se com os hinos e poemas dos salmos, muitos dos quais são cânticos de amor a Deus. Quanto mais conhecer a Palavra de Deus, tanto mais você conhecerá a Deus. E, quanto mais conhecer a Deus, tanto mais claramente ouvirá o pulsar do coração de amor dEle.

PERGUNTAS DIFÍCEIS E RESPOSTAS DIRETAS SOBRE O AMOR DE DEUS

Se a natureza é uma expressão do amor de Deus, por que Ele permite males naturais, tais como terremotos, furacões, inundações e doenças, que matam centenas de pessoas todos os anos?

As catástrofes naturais resultam do nosso pecado, não sendo uma evidência de que o amor de Deus é incompleto ou ineficaz. Uma transformação ocorreu na terra depois que Adão e Eva desobedeceram a Deus no jardim. Deus disse: "Maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida [...] No suor do teu rosto comerás o teu pão" (Gên. 3:17,19). O mundo ficou corrompido pelo mal físico, e isso quase sempre traz fadiga à vida dos seus habitantes, até mesmo daqueles que amam a Deus. Os que constróem casas e cidades perto de uma zona onde existe uma falha geológica arriscam-se a sofrer ferimentos e morte por causa de terremotos. Se você morar numa região sujeita à passagem de furacões ou ciclones, ou numa planície onde ocorrem inundações, as suas plantações e propriedade podem ser completamente aniquiladas. Se deixar de proteger-se contra doenças, pode tornar-se uma de suas vítimas.
É importante compreender que as pessoas que passam por tragédias devidas a desastres naturais não sofrem por serem mais perversas do que as que não são afetadas por elas (veja Luc. 13:3-5). Pelo contrário, o mal físico entra em nossa vida por diferentes razões. Deus é amoroso e a única maneira de O amarmos é livremente. E o livre-arbítrio é a origem do mal.
1. Alguns males físicos resultam de nossas escolhas livres. Se você construir uma casa perto da falha geológica de San Andreas na Califórnia, poderá ser morto por um terremoto. Se comprar uma fazenda nas margens do rio Mississipi, você e sua propriedade poderão ser varridos por uma inundação. Se você comer demais e exercitar-se pouco, estará arriscando-se a ter um enfarto cardíaco.
2. Alguns males físicos resultam da decisão de não fazer nada. A preguiça pode levar à pobreza. Deixar para depois um exame físico de rotina pode permitir que um câncer não detectado se torne impossível de tratar. Não se dispor a quebrar o mau hábito de dirigir quando cansado pode causar um acidente fatal.
3. Alguns males físicos resultam das escolhas livres de outros. O abuso de crianças, balas perdidas, assaltos e mortes no trânsito devido à embriaguez são exemplos de como pessoas inocentes sofrem males nas mãos de indivíduos irresponsáveis ou perversos.
4. Alguns males físicos são subprodutos de atividades positivas. Algumas pessoas que vão ao lago velejar ou nadar acabarão afogando-se. Os esquiadores, alpinistas e pára-quedistas algumas vezes se machucam ou morrem por causa do seu esporte. Até uma viagem de carro para o prédio da igreja pode terminar num ferimento grave ou morte.
5. Alguns males físicos resultam da atividade de espíritos malignos. Os sofrimentos de Jó foram atribuídos a Satanás (Jó 1:6-12). Os espíritos malignos oprimem e afligem as pessoas doentes (Mat. 17:14-18; Luc. 13:11).
6. Alguns males físicos são advertências de Deus sobre males físicos ainda maiores. Uma dor de dente pode ajudar a evitar problemas dentários futuros. As dores no peito, quando investigadas, podem evitar a morte desnecessária. A dor de perder um parente por causa de câncer pode levar os familiares a fazer exames médicos para detectar a moléstia.
7. Alguns males físicos são advertências de Deus sobre males morais. A dor e a tragédia chamam nossa atenção e nos fazem buscar a Deus muito mais do que outras experiências. Paulo falou sobre a ira de Deus levar ao arrependimento (Rom. 2:4). C.S. Lewis falou do sofrimento como o megafone de Deus.
8. Alguns males físicos são permitidos para ajudar o desenvolvimento moral. Sem tribulação, não haveria paciência. Os irmãos de José o venderam como escravo, mas ele os perdoou e disse: "Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem" (Gên. 50:20). Jó sofreu muito e disse: "Se ele (Deus) me provasse, sairia eu como o ouro" (Jó 23:10).
9. Alguns males físicos ocorrem porque formas superiores de vida vivem em função das inferiores. Neste mundo físico, os pássaros comem os vermes, os gatos comem os pássaros, e as crianças estouvadas torturam os gatos. Da mesma forma, pessoas e forças maiores nos perseguem ou nos ferem sem justa causa. Algumas vezes nos defendemos contra elas, e outras vezes, apesar dos nossos esforços, não podemos fazê-lo.

Por que então nosso Deus onipotente não intervém milagrosamente e evita que o mal físico aconteça? Primeiro, Deus intervém às vezes (quando acha necessário para o Seu plano geral redentor), mas para fazer isso regularmente Ele teria de interferir no pleno exercício do livre-arbítrio, deixando-nos com um mundo algo menos do que completamente moral. Segundo, num mundo de constante intervenção divina contra ações perversas, todo aprendizado moral cessaria. Jamais experimentaríamos as más conseqüências das escolhas erradas e não realizaríamos nosso potencial para o progresso ou desenvolvimento moral.

Por que um Deus amoroso permite que as Suas criações humanas maltratem umas às outras? Por que Ele permite que os seres humanos se tornem assassinos, estupradores, abusem de crianças, façam abortos, e assim por diante?

A verdadeira pergunta por trás dessas questões é: "Por que Deus fez criaturas com livre-arbítrio quando Ele sabia que algumas iriam preferir o mal?". Porque criar indivíduos com livre-arbítrio era a melhor escolha possível dentre pelo menos quatro opções abertas para um Deus amoroso.
Primeiro, Ele poderia ter evitado completamente o pecado deixando de criar o mundo. Mas, Deus é amor, e como um pai amoroso Ele queria uma família com quem compartilhar o Seu amor.
Segundo, Ele não teria escolhido fazer um mundo habitado por criaturas que O amassem sem possibilidade de escolha. O amor forçado é uma contradição. Os robôs não amam realmente, eles são programados para responder.
Terceiro, Ele poderia, hipoteticamente, ter criado um mundo no qual as pessoas tivessem liberdade de escolha mas jamais pecassem. Todavia, desde que as pessoas são livres para escolher o pecado, isso nunca aconteceria.
Quarto, Ele poderia ter criado um mundo em que as pessoas fossem livres e escolhessem pecar – que foi o que Ele fez. Deus criou então Adão e Eva com a capacidade de obedecer e desobedecer, de amar e não amar a Ele e a outros. Eles decidiram finalmente desobedecer e, em conseqüência, o pecado entrou na raça humana.
Para alguns, talvez pareça uma clara contradição à santidade de Deus que Ele tivesse escolhido a única opção na qual o mal poderia ocorrer. Os seres humanos livres podem optar por rejeitar, zombar e desobedecer a Ele face a face – e fazem isso realmente. Os seres humanos também agridem e ferem facilmente uns aos outros. Todavia, o pecado foi a possibilidade permitida por Deus, a fim de nos amar e permitir que O amemos da melhor maneira possível.

Extraído do Livro " Não tenho fé suficiente para ser ateu"

O "Já" e o " Ainda Não"- John Sttot

O “JÁ” E O “AINDA NÃO”


Eu comecei a Introdução com a tensão entre o "ontem" (passado) e o "hoje" (presente); termino agora com uma outra tensão, entre o "já" (presente) e o "ainda não" (futuro). A primeira concerne à conexão entre o histórico e o contemporâneo; a segunda, entre o contem­porâneo e o escatológico. Mas as duas tensões andam juntas. Afinal, em Jesus Cristo e através dele o "ontem", o "hoje", o "já" e o "ainda não" —passado, presente e futuro — se conciliam em uma criativa relação. Os cristãos vivem no presente, mas o fazem em gratidão pelo passado e na expectativa do futuro.

Este capítulo final é um ensaio a respeito do que eu gosto de chamar de "CBE". Não, eu não estou falando do "Con­gresso Brasileiro de Evangelização", mas de "Cristianismo Bíblico Equilibrado". Equilíbrio é uma coisa rara em nossos dias em quase todas as esferas, inclusive entre nós que professamos seguir a Cristo.

Não estou dizendo que tenho um conhecimento pessoal mais achegado com o diabo; aliás, pode até ser que alguns de meus leitores o conheçam melhor do que eu! Mas o que eu sei é que ele é um fanático e o grande inimigo de todo bom senso, moderação e equilíbrio. Um dos seus passatem­pos prediletos é perturbar o nosso equilíbrio e desestruturar os cristãos (especialmente os evangélicos). Quando não consegue nos induzir a negar a Cristo, ele dá um jeito de nos fazer distorcê-lo. É por isso que se vê por toda parte um cristianismo desequilibrado, em que se superenfatiza um aspecto da verdade em detrimento do outro. Graças a Deus, porém, que ele nos deu dois ouvidos, a fim de que possamos ouvir em dobro e com sensibilidade, atentando cuidadosamente para ambos os lados de cada questão; deu-nos dois olhos, para que possamos enxergar bem e não pela metade; duas mãos, para que possamos agarrar os dois extremos de cada antinomia bíblica; e dois pés, que nos per­mitem caminhar com estabilidade e não sair manquejando pela vida.

Uma compreensão equilibrada da tensão existente entre o "já" e o "ainda não" seria de muita ajuda para a unidade cristã, e especialmente para uma harmonia maior entre os crentes evangélicos. Eu confesso que fico profundamente confuso com as barreiras que se colocam entre nós, que compartilhamos da mesma fé bíblica. Eu não estou falando, agora, nem da divisão entre Roma e as igrejas da Reforma, nem do abismo que há entre cristãos liberais e conserva­dores, ou seja, entre aqueles que crêem no dom da verdade revelada e aqueles cuja maior autoridade é aquilo que eles chamam de "o consenso da opinião moderna". Pelo con­trário, estou me referindo à desunião que reina dentro do próp[1]rio movimento evangelical. Isto sem falar que nós cremos no Credo dos Apóstolos e no Credo Niceno, como também na substância das grandes confissões da Reforma. E tem mais: não faz muito tempo que estabelecemos um conveniente ponto de referência através do Pacto de Lausanne (1974) e sua elaboração no Manifesto de Manila (1989). Assim, estamos todos de acordo quanto aos fun­damentos éticos e doutrinários da fé. Mesmo assim, parece que, constitucionalmente, somos dados a discussões e divisões, ou simplesmente a seguir o nosso próprio cami­nho e construir o nosso próprio império. Parece que sofremos de uma incapacidade patológica de nos acertar­mos uns com os outros ou de cooperarmos juntos na causa do reino de Deus. Nós não podemos ignorar esta situação deveras lamentável.

Quem já leu o maravilhoso conto O Pecado Secreto de Septimus Brope, de Saki?[2] Nele a Sra. Troyle expressa o seu desânimo ao pensar em perder Florinda, sua empre­gada. "Eu tenho certeza de que não sei o que fazer sem Florinda... Ela compreende o meu cabelo. Eu mesma já desisti há muito tempo de fazer alguma coisa com ele. Na minha opinião, o cabelo da gente é como um marido: conquanto que apareçamos juntos em público, não impor­tam as nossas divergências na vida privada!" Mas nós não temos o direito de nos considerar uns aos outros assim como a Sra. Troyle considerava seu cabelo ou seu marido. As nossas divergências, tanto as públicas como as parti­culares, têm importância, sim. Afinal, elas são, sem dúvida alguma, desagradáveis a Deus e prejudiciais à nossa missão ao mundo.

Um exemplo disso tem relação com o tremendo progresso das igrejas pentecostais e do movimento carismático no mundo inteiro. Eles têm crescido mais rápido do que qual­quer outro grupo cristão. Mas certos cristãos têm contra eles uma reação tão negativa que parece que estão correndo o risco de apagar o Espírito, ao passo que certos carismáticos são tão triunfalistas que acham difícil escutar quem porventura tenha sérios questionamentos teológicos acerca de suas crenças e práticas pentecostais distintivas. Mas, então, será que os evangélicos, tanto carismáticos como não-carismáticos, não podem se respeitar e aceitar mutua­mente a ponto de permitir que haja entre eles uma comu­nhão genuína e uma ativa colaboração? Eu acho que sim, é possível, mesmo sendo problemático; e acho que uma idéia do que significa a tensão entre o "já" e o "ainda não" deveria contribuir consideravelmente para uma compreensão mútua.

O REINO QUE VEIO E QUE VIRÁ

Para o cristianismo do Novo Testamento, é fundamental a perspectiva de que nós estamos vivendo "tempos inter­mediários" — entre o passado e o futuro, entre a primeira e a segunda vindas de Cristo, entre o que foi feito e o que resta por fazer, entre a realidade presente e o destino futuro, entre o reino que veio e o reino que virá, entre o "já" em relação à instauração do reino e o "ainda não" em relação a sua consumação. Do ponto de vista físico, é naturalmente impossível olhar ao mesmo tempo para duas direções opostas; espiritualmente falando, porém, é essen­cial que o façamos, olhando para trás, para a encarnação e todas as suas implicações, e olhando para a frente, para a parusia e tudo o que ela há de trazer. Um texto que exemplifica isto, se me permitem modificá-lo um pouquinho, seria este: "Queridos amigos, agora nós somos filhos de Deus, mas ainda não foi revelado o que haveremos de ser."[3] A base teológica para esta tensão vai ser encontrada no próprio ensinamento de Jesus acerca do reino de Deus. Todo mundo concorda que o reino se manifestou claramen­te em seu ensino, como também que ele anunciou a vinda desse reino. O que leva os estudiosos a discordarem entre si, porém, é qual é o tempo da sua chegada. Será que o reino já veio, porque Jesus o trouxe consigo? Ou ele ainda virá no futuro e, portanto, temos que continuar aguardando-o? Ou será que a verdade reside entre estas posições, consis­tindo na combinação das duas?
O teólogo alemão Albert Schweitzer, falecido em 1965, foi um homem incrivelmente versátil: era músico, médico, teólogo e missionário. Em seu famoso livro Era Busca do Jesus Histórico (The Quest for the Histórical Jesus,1906), ele argumenta que, de acordo com Jesus, o reino jaz in­teiramente no futuro. Jesus teria sido um profeta apoca­líptico, que ensinou (equivocadamente) que a qualquer momento Deus iria intervir de maneira sobrenatural, estabelecendo o seu reino. As demandas deveras radicais que Jesus fez aos seus discípulos (p. ex. vender os seus bens, voltar a outra face e não resistir ao mal) representariam uma "ética interina" à luz da iminente chegada do reino. Essa posição de Schweitzer tem sido chamada de escatologia "consistente", pois ele desenvolveu sua única tese com eficácia e consistência.
No outro extremo encontra-se C. H. Dodd, que morreu em 1973. Em seu livro As Parábolas do Reino (The Parables of the Kingdom, 1934) ele elaborou sua "escatologia rea­lizada", a saber, que a vinda do reino residia completamente no passado. Embora o domínio de Deus seja eterno, mesmo assim ele irrompeu no tempo e no espaço na pessoa de Jesus. Dodd colocava uma ênfase especial em dois versículos, cujos verbos se encontram no pretérito perfeito: "O reino de Deus chegou"[4] e "O reino de Deus chegou sobre vós".[5] Além disso, segundo Dodd, não existe nenhuma vinda futura do reino. Os versículos que falam nisso devem ser enten­didos como concessões a uma escatologia cristã popular, primitiva; eles não faziam parte do ensino de Jesus.

Em lugar dessas polarizações extremas (Schweitzer de­clarando ser a vinda do reino completamente futura, e Dodd completamente passada), a maioria dos estudiosos tem assumido uma posição intermediária, afirmando que Jesus lalou do reino tanto como uma realidade presente como uma expectativa futura. Por um lado, ele mesmo o inau­gurou; e, por outro lado, ele o consumaria quando de sua vinda. Joachim Jeremias, por exemplo, escreveu em seu livro As Parábolas de Jesus (The Parables of Jesus, 1947) a respeito da "escatologia no decurso da realização". A. M. Hunter, em seu Interpretando as Parábolas (Interpreting the Parables, 1960), preferiu o termo "escatologia inaugu­rada". Uma estância similar foi adotada pelo teólogo holandês Herman Ridderbos em A Vinda do Reino (The Corning of the Kingdom, 1950) e pelo americano George Eldon Ladd, tanto em O Evangelho do Reino (The Gospel ofthe Kingdom, 1959) como em A Presença do Futuro (The Presence of the Future, 1974), em que o assunto é tratado com muita maturidade. A tese central de Ladd era que o reino de Deus, no sentido de domínio dinâmico e redentor de Deus,

que há de aparecer como um ato apocalíptico no final dos tempos, já chegou à história humana na pessoa e missão de Jesus, que veio para derrotar o mal, livrar os homens do poder do mal e conduzi-los às bênçãos do reino de Deus.[6]

Assim, o reino realmente chegou com Jesus. "Mas ele não veio sem deixar algo para trás: a consumação ainda jaz num futuro indeterminado. "[7]

Que Jesus considerava e descreveu o reino como um fenô­meno presente, disso não há dúvida. Ele ensinou que o tempo do cumprimento havia chegado;[8] que agora o "va­lente" estava amarrado e desarmado, facilitando que lhe saqueassem os bens, como era evidente a partir de seus exorcismos;[9] que o reino já estava ou "dentro"ou "entre" as pessoas;[10] que agora se podia "entrar" nele ou "recebê-lo";[11] e que, desde o tempo de João Batista, seu precursor, que havia anunciado sua chegada iminente, o reino de Deus vinha sendo "tomado por esforço" e que "aqueles que se esforçam" se haviam "apoderado dele".[12]

Na perspectiva de Jesus, porém, o reino era também uma expectativa futura. Ele só seria aperfeiçoado no último dia. Assim ele olhava em direção ao fim, e ensinou seus dis­cípulos a fazerem o mesmo. Eles deviam orar "Venha o teu reino"[13] e "buscá-lo primeiro",[14] dando prioridade a sua expansão. Às vezes ele se referia ao estado final de seus seguidores em termos de "entrar" no reino[15] ou "recebê-lo".[16]

Suas parábolas, principalmente as rurais (p. ex. a pará­bola da semente que crescia secretamente, a do grão de mostarda, a do trigo e do joio),[17] conciliam os processos de plantar, crescer e colher. Como semente, o reino já tinha sido plantado no mundo; agora, através da invisível atividade divina, ele iria crescer até o fim. Parece ter sido isso o que Jesus quis dizer com "o mistério (ou segredo) do reino".[18] Sua presença era discreta, mas também revo­lucionária, assim como o poder de Deus a faria crescer até que finalmente se tornasse manifesta a todos.

Uma outra maneira pela qual a Escritura expressa a tensão entre o "já" e o "ainda não", o presente e o futuro, é através da terminologia das duas "eras". Na perspectiva do Antigo Testamento, a história se divide entre "esta era" e a "era vindoura",[19] entre "o tempo presente" (mau) e "o tempo por vir" ou "os últimos dias", a saber, o reino da justiça a ser introduzido pelo Messias.[20] Às vezes esta era é comparada a uma noite longa e escura, à qual se seguirá o alvorecer de um novo dia. Esta estrutura simples de duas eras consecutivas foi decisivamente mudada, porém, com a vinda de Jesus. Ele introduziu uma nova era, morrendo por nós a fim de livrar-nos "deste mundo perverso".[21] Consequentemente, através de Jesus, o Pai já "nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor".[22] Nós fomos até mesmo ressuscitados da morte e assentados com Cristo nos lugares celestiais.[23]

Ao mesmo tempo, a velha era continua. E assim as duas se sobrepõem. "As trevas se vão dissipando e a verdadeira luz já brilha."[24] "Lado a lado... com a continuação desse esquema mais velho (se. a nova era sucedendo a velha), pode-se notar o irromper de um novo sistema, que implica numa coexistência dos dois mundos ou estados.[25] Um dia a velha era chegará ao fim (que será o "fim dos tempos", a "consumação dos séculos"),[26] e a nova era, que foi inau­gurada pela primeira vinda de Cristo, se consumará em sua segunda vinda. Entrementes, enquanto as duas eras continuam e nós nos vemos envolvidos na tensão entre elas, somos exortados a "não nos conformarmos com este mundo", mas, pelo contrário, "transformar-nos" segundo a vontade de Deus, ou melhor, a vivermos coerentemente como filhos da luz.[27]

Mas a tensão permanece. Com efeito, ela encontra ex­pressão em quase todas as metáforas usadas pelo Novo Testamento para a bênção de pertencer a Cristo. Assim, nós já fomos salvos, mas também seremos salvos um dia.[28] Já "temos a redenção", mas o dia da redenção ainda é futuro.[29] Já somos filhos adotivos de Deus, mas também aguardamos a nossa adoção.[30] Já "passamos da morte para a vida", mas a vida eterna é também uma dádiva futura.[31] Já somos novas criaturas, embora Deus ainda não tenha feito novas todas as coisas.[32] Nós já estamos "cheios", mas ainda não chegamos à plenitude de Deus.[33] Cristo já está reinando, embora seus inimigos ainda não se tenham tornado estrado de seus pés.[34]

Vivendo entre o presente e o futuro, a situação carac­terística dos cristãos é descrita de variadas maneiras: tendo esperança,[35] aguardando,[36] aguardando com ardente expectativa,[37] gemendo.[38] Afinal, nós ainda passamos por lamentáveis provações e tribulações. Na verdade, "nós temos que ver a realidade desse sofrimento como uma manifestação concreta do ainda não".[39] Enquanto isso, precisamos aguardar, não só "com ardente expectativa"[40] mas também "com paciência".[41] Como escreveu John Murray:
Tentativas de reclamar para a vida presente elementos que pertencem à perfeição consumada ... são apenas sintomas dessa impaciência que iria interromper a ordem divina. Expectativa e esperança não devem cruzar as fronteiras da história; elas têm que esperar o fim, 'a liberdade da glória dos filhos de Deus'.[42]

A essência do período intermediário entre o "já" e o "ainda não", entre o reino que veio e o reino que virá, é a presença do Espírito Santo no povo de Deus. Por um lado, a dádiva do Espírito é a bênção que distingue o reino de Deus e é, portanto, o principal sinal de que a nova era se aproxima.[43] Por outro lado, já que o fato de o Espírito habitar em nós é apenas o princípio da nossa herança no reino, ele é também a garantia de que um dia o resto haverá de ser nosso. O Novo Testamento usa três metáforas para ilustrar isso. O Espírito Santo é "as primícias", garantindo assim que virá a plena colheita;[44] ele é o "penhor", ou a primeira parcela do pagamento, garantindo com isso que haverá o pagamento completo;[45] e é o antegosto, garantia de que o banquete completo será desfrutado um dia.[46] Assim, o Espírito Santo é "tanto o cumprimento da pro­messa como a promessa do cumprimento: ele é a garantia de que o novo mundo de Deus já começou, e também um sinal de que esse novo mundo ainda há de vir."[47]

Agora, sim, estamos prontos para analisar alguns exem­plos da tensão entre o "já" e o "ainda não".

REVELAÇÃO, SANTIDADE E CURA

O primeiro exemplo encontra-se na esfera intelectual, ou na questão da revelação.
Nós declaramos com prazer e confiança que Deus já se revelou aos seres humanos, não somente no universo criado, em nossa razão e consciência, mas principalmente em seu Filho Jesus Cristo e através do pleno testemunho que a Bíblia dá a respeito dele. "Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos pro­fetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho."[48] Por isso nós ousamos dizer que já conhecemos a Deus, porque ele se fez conhecido a nós. Ele mesmo tomou a iniciativa de afastar a cortina que, de outra forma, o esconderia de nós.
Nós nos regozijamos profundamente nas glórias da auto-revelação de Deus. Sua Palavra é, de fato, luz para o nosso caminho.[49]

Não obstante, nós ainda não conhecemos a Deus tal como ele nos conhece. Nosso conhecimento é parcial, pois sua revelação foi parcial. Deve ser este o significado do pro­vérbio que diz que "a glória de Deus é encobrir as coi­sas...".[50] Ele revelou tudo o que quis revelar e que ele considera ser para o nosso bem — mas não tudo o que existe para revelar. Ainda restam muitos mistérios, que não deveríamos tentar desvendar, já que Deus os escondeu de nós. "Andamos por fé, e não pelo que vemos."[51]

De maneira especial (tomando de empréstimo a impressio­nante imagem usada por Lutero ao dirigir-se aos outros monges agostinianos em Heidelberg, em 1518), tudo que nós conseguimos ver é "as costas visíveis de Deus, ao revelar-se no sofrimento e na cruz"; sua face, porém nós não podemos ver. Como diz o Dr. Alister McGrath, "o Deus que nos fala da cruz é — usando a emocionante e ousada frase de Lutero — 'o Deus crucificado e oculto'."[52]

Nós deveríamos acautelar-nos de Eunômio, que foi bispo de Cízico em Mísia no século IV. Ele foi um dos líderes de um grupo herético chamado "Anomoianos", arianos extremos que ensinavam que o Filho era "diferente" (anomoios) do Pai, e que na verdade havia sido criado pelo Pai. Certa vez Eunômio teve a ousadia de declarar: "Eu conheço a Deus tão bem quanto ele conhece a si mesmo." Um equivalente moderno (porém mais cômico) seria aquele velho pregador reavivalista lá do sul dos Estados Unidos que disse, certa vez: "Hoje eu vou explicar a vocês o inexplicável. Vou definir o indefinível. Vou ponderar o imponderável. Vou destrinchar o indestrinchável."[53]

Seria muito mais sábio colocarmo-nos ao lado daqueles autores bíblicos que, mesmo sabendo-se instrumentos da revelação divina, confessaram humildemente, no entanto, que o seu conhecimento permanecia limitado. Moisés, a quem o Senhor "conhecia face a face", reconheceu: "O Senhor Eterno, eu sei que começaste a mostrar a tua grandeza e o teu poder a mim, teu servo."[54] E Paulo? Como igreja, nós temos para com ele uma dívida eterna por tudo que nos ensinou. Mesmo assim, ele disse que o seu conhe­cimento era parcial e imperfeito e o comparou aos pensa­mentos imaturos de uma criança, como também aos distorcidos reflexos de um espelho.[55] E o apóstolo João, que havia penetrado profundamente na mente de Cristo, ad­mitiu que "ainda não se manifestou o que havemos de ser". [56]
Portanto, embora esteja certo gloriar-se na dádiva de Deus e na supremacia da revelação de Deus, também está certo confessar a nossa ignorância acerca de muitas coisas. Nós sabemos e não sabemos. "As coisas encobertas per­tencem ao Senhor nosso Deus; porém as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos as palavras desta lei."[57] É muito importante conservar essa distinção entre as coisas reveladas e as coisas secretas, pois isto nos mantém confiantes e até dogmáticos com relação às primeiras, que nos pertencem, enquanto que permanecemos agnósticos acerca das últi­mas, que pertencem a Deus. Assim também nos sentiremos livres para explorar as coisas reveladas, e firmes para não ultrapassar os limites dos segredos de Deus. Mas, por outro lado, embora nos refreando diante das coisas secretas, não devemos ser tímidos em acreditar, expor e defender aquilo que Deus nos revelou. Eu gostaria de ver entre nós mais ousadia na proclamação daquilo que foi revelado, e mais reticência diante do que foi mantido em segredo. Para que haja unidade é preciso haver concordância quanto à ver­dade plenamente revelada, mesmo quando damos um ao outro liberdade na área da adiaphora, as "questões secun­dárias". E qual é o critério para discerni-las? É quando os cristãos, apesar de tudo, chegam a diferentes conclusões a respeito delas. Estou pensando, por exemplo, em contro­vérsias quanto ao batismo, governo da igreja, liturgia e rituais, posições carismáticas e cumprimento da profecia.

A segunda tensão reside na esfera moral, ou na questão da santidade.

Deus já colocou dentro de nós o seu Espírito Santo, a fim de tornar-nos santos.[58] O Espírito Santo já está atuando em nós, subjugando nossa natureza humana caída e egoísta e fazendo amadurecer em nosso caráter as nove manifestações do seu fruto.[59] Semelhantemente, podemos afirmar que ele já está nos transformando pouco a pouco, conforme a imagem de Cristo.[60]
No entanto, a nossa natureza caída ainda não foi erradicada, pois ainda "a carne milita contra o Espírito",[61] de forma que "se dissermos que não temos pecado, enga­namos a nós mesmos".[62] Nós ainda não nos conformamos completamente à perfeita vontade divina, pois ainda não amamos a Deus com todo o nosso ser, nem o nosso próximo como a nós mesmos. Estas coisas aguardam a vinda de Cristo. Como disse Paulo, nós "ainda não obtivemos a perfeição", mas "prosseguimos para o alvo", confiantes de que "aquele que começou boa obra (em nós) há de completá-la até ao dia de Cristo Jesus".[63]

Assim, pois, nós vivemos uma dolorosa dialética entre o "já" e o "ainda não", entre a derrota e a vitória, entre o desânimo com as nossas constantes falhas e a promessa de libertação definitiva, entre o clamor de suspirar: "Quem me livrará do corpo desta morte?" e o grito de segurança: "Graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor!"[64] Por um lado, precisamos levar mais a sério a ordem de Deus: "Sede santos, porque eu... sou santo",[65] a instrução de Jesus: "Vai, e não peques mais"[66] e as declarações de João, de que ele está escrevendo a fim de que os seus leitores "não pequem" e de que "todo aquele que é nascido de Deus não viva na prática do pecado".[67] Por outro lado, precisamos reconhe­cer a realidade de que tanto o pecado como o Espírito Santo habitam em nós.[68] Nós continuamos em busca da perfeição sem pecado pela qual tanto ansiamos. Por isso, mesmo rejeitando o perfeccionismo, nós nos recusamos a abraçar o reducionismo, ou seja, contentar-nos com baixos padrões de expectativa.

Handley Moule resumiu esta tensão no primeiro capítulo do seu livro Pensamentos sobre A Santidade Cristã (Thoughts on Christian Sanctity, 1888), intitulado "Obje­tivos, Limites, Possibilidades". Ao tratar dos "Objetivos", ele escreveu: "O mínimo a que aspiramos é andar o dia inteiro com Deus; habitar a cada hora em Cristo...; amar a Deus de todo o coração e o nosso próximo como a nós mesmos ...; "entregar-nos a Deus"....; romper com todo o mal e seguir todo o bem."[69] E ele continua: "Temos que renegar absolutamente todo propósito secreto de imora­lidade, toda tolerância para com o pecado... Não podemos, sequer por um instante, deixar de andar dia a dia, hora a hora, continuamente com Deus, em Cristo, pela graça do Espírito Santo."[70] Mas depois, sobre os "Limites" (não dos nossos objetivos, mas relativos às nossa realizações), ele acrescentou: "Eu afirmo com absoluta convicção, baseado não só na experiência da Igreja como também na infalível Palavra de Deus, que, no mistério das coisas, haverá li­mitações até o fim, limitações muito humilhantes, fracas­sos bem reais. Até o fim será um pecador que haverá de andar com Deus."[71] E J. C. Ryle afirmou algo similar: "O velho John Newton, um traficante de escravos convertido, disse: 'Eu não sou o que deveria ser, não sou o que quero ser, não sou o que espero ser em um outro mundo; mas pelo menos não sou mais aquilo que fui um dia e, pela graça de Deus, sou o que sou."[72]

A terceira tensão entre o "já" e o "ainda não" encontra-se na esfera física, ou na questão da cura.


Nós declaramos que o reino de Deus, há muito tempo prometido, já foi inaugurado, uma vez que ele irrompeu na história com Jesus Cristo. Além do mais, Jesus não se contentou simplesmente em anunciar o reino; ele foi mais além, demonstrando a sua chegada através dos seus po­derosos feitos no campo físico. Ele andou sobre as águas e transformou água em vinho. Repreendeu, o vento, acal­mou uma tempestade e multiplicou pães e peixes. A na­tureza submeteu-se a ele. Seu poder se manifestou de forma especial no corpo humano, quando ele curou os enfermos, expulsou demônios e ressuscitou os mortos.

Semelhantemente, ele conferiu, tanto aos Doze como aos Setenta, autoridade para divulgar sua missão messiânica em Israel e para realizar milagres. Agora, até que ponto ele pretendia ampliar sua autoridade, isso é uma questão em discussão. Falando em termos gerais, os milagres eram "as credenciais de um verdadeiro apóstolo".[73] No entanto, seria ridículo tentar limitar ou domesticar o Deus todo-poderoso. O Deus que criou o universo, e que através de Jesus introduziu o reino, não pode ser colocado por nós em uma camisa-de-força. Nós temos que dar a ele a liber­dade e a soberania que lhe pertencem, ficando inteiramente abertos à possibilidade de ver milagres físicos hoje.

O reino de Deus, entretanto, ainda não chegou em sua plenitude. Afinal, "o reino do mundo" ainda não "se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo", quando então "ele reinará pelos séculos dos séculos".[74] Ele continua aguardando aquele dia. E os nossos corpos, de maneira particular, ainda não foram redimidos. Tampouco a natureza foi inteiramente submetida ao domínio de Cristo. Pelo contrário, "toda a criação a um só tempo geme e suporta angústias até agora", aguardando que nasça o novo mundo. "E não somente ela, mas também nós... gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção de nosso corpo".[75]

Assim, pois, temos de admitir a tensão entre o "já" e o "ainda não" também nessa esfera. Na verdade, nós já "provamos... os poderes do mundo vindouro",[76] mas até aqui só foi um gostinho. Parte da nossa experiência cristã consiste em que a vida ressurreta de Jesus se "manifesta em nosso corpo mortal",[77] sua vida em meio a nossa morte, sua força em nossa fraqueza, dando-nos um vigor físico e uma vitalidade que de outra forma não conheceríamos. Ao mesmo tempo, nossos corpos continuam sendo frágeis e mortais, e querer gozar agora de perfeita saúde seria antecipar a nossa ressurreição. A ressurreição corporal de Jesus foi a garantia — ou melhor, o começo — da nova criação de Deus. No entanto, Deus ainda não se ergueu do seu trono para proferir a palavra decisiva: "Eis que faço novas todas as coisas!"[78] Resumindo: aqueles que descar­tam a possibilidade dos milagres hoje estão se esquecendo do "já" do reino, enquanto que aqueles que vêem neles a evidência da chamada "vida cristã normal" estão esque­cidos do "ainda não"do reino.


IGREJA E SOCIEDADE

Em quarto lugar, a mesma tensão é experimentada na esfera eclesiástica, ou na questão da disciplina na igreja. Nós afirmamos, e com razão, que Jesus, o Messias, já está congregando à sua volta um povo de propriedade sua. E a comunidade messiânica já se caracteriza pela verdade, o amor e a santidade para a qual é chamada. A igreja é "coluna e baluarte da verdade",[79] isto é, o alicerce que a mantém firme e a coluna que a mantém erguida. Quanto ao amor, Cristo, através da sua cruz, derrubou "a parede da separação" que dividia povos de diferentes raças, nações, tribos e classes, a fim de "criar em si mesmo um novo homem".[80] Quanto à santidade, sua nova sociedade é chamada, em diversos lugares, uma nação santa, um sacerdócio santo e um povo santo.[81] Assim, verdade, amor e santidade já são marcas essenciais da nova sociedade de Jesus Cristo.
Contudo, Cristo ainda não apresentou a sua noiva a si mesmo como "igreja gloriosa, sem mancha, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito".[82] Pelo con­trário, a vida presente e o testemunho da igreja carregam as máculas de muitos erros, pecados e discórdias. A história da igreja é a história da incrível paciência de Deus com um povo duro e obstinado.

Assim, pois, sempre que pensamos na igreja, temos que levar em conta o ideal e a realidade. A igreja é, ao mesmo tempo, comprometida com a verdade e inclinada para o erro, unida e dividida, pura mas também impura. Não que devamos condescender com suas falhas. "O incontes­tável ainda não nunca pode servir de álibi para as nossas derrotas."[83] Precisamos guardar tanto a visão da pureza como a da unidade da igreja, isto é, tanto sua pureza e ética doutrinária como sua unidade invisível. Já que estas coisas são da vontade de Deus, elas devem ser o nosso alvo. Em consequência, nós somos convocados a "combater o bom combate da fé",[84] como também a "esforçar-nos diligente­mente por preservar a unidade do Espírito no vínculo da paz".[85] E, na busca destas coisas, há lugar para a disciplina em casos de séria heresia ou pecado.

Mas o erro e a maldade não serão completamente erra­dicados da igreja neste mundo. Eles continuarão coexis­tindo com a verdade e a bondade. "Deixai-os crescer juntos até a colheita", Jesus disse na parábola do trigo e do joio.[86] Certas pessoas argumentam que, porque nesta parábola "o campo é o mundo",[87] a coexistência a que Jesus se refere está no mundo e não na igreja. O inimigo, porém, semeia o joio "no meio do trigo",[88] e é "do seu reino"[89] que, no último dia, o Filho do homem irá arrancar o mal. Nem a Escritura nem a história da igreja justifica o uso de severas medidas disciplinares como uma tentativa de garantir uma igreja perfeitamente pura neste mundo.

A quinta área de tensão entre o "agora" e o "depois", entre o "já" e o "ainda não", encontra-se na esfera social, ou na questão do progresso.

Deus já está agindo na sociedade humana, é o que nós dizemos. Isto se dá, em parte, pela sua "graça comum", quando dá ao mundo a bênção da família e do governo, através dos quais o mal é restringido e os relacionamentos controlados. Mas acontece também através dos membros de sua comunidade redimida, que zela pelos valores do seu reino, sem comprometê-los. Jesus disse que o seu povo deveria impregnar a sociedade como sal e luz. A partir destes modelos, pode-se deduzir que Jesus esperava que os seus seguidores influenciassem o mundo para o bem. Afinal, ambas as coisas refletem coisas práticas e efetivas na vida. Elas fazem diferença no contexto em que são colocadas: o sal previne a deterioração e a luz expulsa as trevas. Assim, lado a lado com a degeneração social, tem se registrado um considerável progresso social: maior disponibilidade de cuidados médicos, maior alcance da alfabetização e educação, defesa dos direitos humanos, melhora nas con­dições de trabalho, abolição da escravidão e do tráfico de escravos e proteção para os fracos e os vulneráveis.

No entanto, Deus ainda não criou o que prometeu, "novos céus e nova terra, nos quais habita justiça".[90] A justiça do reino ainda não eliminou toda opressão, nem a paz do reino toda violência. Ainda existem "guerras e rumores de guer­ras".[91] As espadas ainda não se converteram em relhas de arados, nem as lanças em podadeiras.[92] As nações ainda não abriram mão da guerra como um método de acertar suas diferenças. O egoísmo, a crueldade e o medo conti­nuam existindo.

Assim, pois, embora esteja certo defender a justiça social e tentar melhorar ainda mais a sociedade, tornando-a mais agradável a Deus, nós sabemos que ela nunca será perfeita. Os cristãos não são utopistas. Mesmo conhecendo o poder transformador do evangelho e os saudáveis efeitos que, como sal e luz do mundo, podemos produzir, nós sabemos também que o mal está entranhado na natureza humana, assim como na sociedade humana. Nós não acalentamos ilusões. Somente Cristo, ao voltar novamente, irá erradicar o mal e entronizar a justiça para sempre. E esse dia nós aguardamos com ansiedade.

Eis aqui, pois, cinco áreas (intelectual, moral, física, eclesiástica e social) em que é vital preservar a tensão entre o "já" e o "ainda não". Até se poderia dizer que há três diferentes tipos de cristãos, dependendo de como eles con­seguem manter esse equilíbrio bíblico.

Primeiro vêm os cristãos do "já". Estes são os otimistas radiantes. Enfatizam, com razão, o que Deus já fez por nós através de Cristo e nos concedeu em Cristo. Mas a impres­são que eles nos dão é que, por isso mesmo, agora já não resta mais nenhum mistério, nenhum pecado que não possa ser superado, nenhuma doença que não possa ser sarada e nenhum mal que não possa ser erradicado da igreja ou até mesmo do mundo. Em resumo: parecem acreditar que a perfeição já pode ser alcançada aqui, agora. Eles me lembram aqueles crentes de Corinto a quem Paulo escre­veu: "Vocês já têm tudo o que precisam! Já são ricos! Vocês já se tornaram reis, e nós, não!"[93]

Não há por que censurar os cristãos do "já". Afinal, sua motivação é glorificar a Cristo. Assim, recusam-se a enxergar limites para aquilo que ele pode fazer. Acham que não aspirar à perfeição agora é uma humilhação para Jesus. Seu otimismo, porém, pode facilmente virar arrogância e acabar em desilusão. Além de ignorar o "ainda não" do Novo Testamento, eles esquecem que a perfeição aguarda a parusia.

Segundo, temos os cristãos do "ainda não". Estes fazem muito bem o estilo do pessimista deprimido. Eles enfatizam, e com razão, o fato de que a obra de Cristo ainda não se completou, e, também acertadamente, aguardam a parusia, quando Cristo há de completar aquilo que ele começou. Mas a impressão que se tem é a de que eles são extremamente negativos em suas atitudes. O que os preocupa é a igno­rância e o fracasso da humanidade, o domínio arrasador da doença e da morte e a impossibilidade de se garantir a existência de uma igreja pura ou uma sociedade perfeita. A qualquer afirmação de que Cristo pode estar agindo vitoriosamente em alguma dessas áreas, eles reagem com um balde de água fria.

Estes também têm uma excelente motivação. Se o pro­pósito dos cristãos do "já" é glorificar a Cristo, o dos cristãos do "ainda não" é ser humildes pecadores. Estão firmemente determinados a corresponder fielmente ao que a Escritura diz sobre a corrupção humana. Mas o pessi­mismo deles pode facilmente virar complacência; aliás, pode até mesmo levá-los a serem condescendentes com o status quo e a uma apatia diante do mal. Eles esquecem o "já" daquilo que Cristo fez através de sua morte, res­surreição e dádiva do espírito, e também o que nós podemos fazer em nossas vidas, e na igreja e sociedade, como re­sultado disso.


Em terceiro lugar vêm os cristãos do "já-e-ainda-não". São os realistas bíblicos. Eles tentam dar o mesmo peso às duas vindas de Jesus, àquilo que ele fez e ao que ele irá fazer. Regozijam-se no primeiro e aguardam ansiosamente pelo último. Querem ao mesmo tempo glorificar a Cristo e humilhar os pecadores. Por um lado, eles têm grande confiança no "já", naquilo que Deus disse e realizou através de Cristo, e um grande desejo de explorar e experimentar ao máximo as riquezas da pessoa e obra de Cristo. Por outro lado, revelam uma humildade genuína diante do "ainda não", humildade para confessar que ainda existe muita ignorância e pecaminosidade, muita fragilidade física, infidelidade eclesiástica e degeneração social — que, aliás, continuarão existindo, como sinais de um mundo caído e "meio salvo", até que Cristo, em sua segunda vinda, venha aperfeiçoar aquilo que começou na sua primeira vinda.

É esta combinação entre o "já" e o "ainda não", o reino inaugurado e o reino consumado, a confiança cristã e a humildade cristã, que caracteriza o verdadeiro evangelica-lismo bíblico e que exemplifica aquele "CBE", tão neces­sário nos dias de hoje.
As grandes proclamações acerca de Cristo sintetizam a nossa posição como "cristãos contemporâneos":

Cristo morreu!
Cristo ressuscitou!
Cristo voltará!

Sua morte e ressurreição fazem parte do "já" do passado, ao passo que sua gloriosa parusia pertence ao "ainda não" do futuro. Seu triunfo supremo, no entanto, é certo. Com efeito, "a esperança da vitória final", escreve Oscar Cullmann, "torna-se ainda mais vívida diante da con­vicção firme e inabalável de que a batalha que decide a vitória já se realizou."
[1]
[2] Saki (H. H. Munro), The Chronicles of Clóvis (1911)
[3] 1 Jo 3.2, paráfrase do autor
[4] Mc 1.15, como ele traduziu engiken
[5] Mt 12.28, ephthasen.
[6] G. E. Ladd, The Presence ofthe Future (1974; SPCK, 1980), p. 218
[7] Ibid, p. 323
[8] P. ex Mc 1.14; Mt 13.16-17
[9] Mt 12.28-29; cf. Lc 10.17-18
[10] Lc 17.20-21
[11] P. ex. Mc 10.15
[12] Mt 11.12;Lc 16.16
[13] Mt6.10
[14] Mt6.33
[15] Mc9.47; cf. Mt 8.11
[16] Mt 25.34
[17] Mc 4.26-29; Mt 13.31-32, 24-29,36-42
[18] Mc 4.11
[19] Lc 20.34-35
[20] P. ex. Is 2.2; Mt 12.32; Mc 10.30
[21] G1 1.4
[22] C1 1.13; cf. At 26.18; 1 Pe 2.9
[23] Ef 2.6; Cl 3.1
[24] 1 Jo 2.8
[25] Geerhardus Vos, The Pauline Eschatology (1930; Baker, 1979), p. 37; cf. Oscar Cullmann, Christ and Time (1946; ET SCM, 1951) e Stephen H. Travis, I Believe in the Second Corning of Jesus (Hodder, 1982)
[26] Mt 13.39; 28.20
[27] Rm 12.2; 13.11-14; 1 Ts 5.4-8
[28] Rm 8.24; 5.9-10; 13.11
[29] C1 1.14; Ef 4.30
[30] Rm 8.15.23
[31] Jo 5.24; 11.25-26; Rm 8.10-11
[32] 2 Co 5.17; Ap 21.5
[33] C1 2.10; Ef 5.18; 3.19
[34] S1 110.1; Ef 1.22; Hb 2.8
[35] Rm 8.24
[36] Fp 3.20, 21; 1 Ts 1.9-10
[37] Rm 8.19
[38] Rm 8.22-23, 26; 2 Co 5.2, 4
[39] G. C. Berkouwer, The Return of Christ (1961 e 1963; Eerdmans, 1972), p. 116
[40] Rm 8.19, 23; 1 Co 1.7
[41] Rm 8.25
[42] John M. Murray, The Epistle to the Romans, The New International Commentary
on the New Testament (Eerdmans, 1959 e 1965), vol. I, p. 310.
[43] P. ex. Is 32.15; 44.3; Ez 39.29; Jo 2.28; Mc 1.8; Hb 6.4-5
[44] Rm 8.23
[45] 2 Co 5.5; Ef 1.14
[46] Hb 6.4-5
[47] Johannes Blauw, The Missionary Nature of the Church (1962; Eerdmans, 1974),
p. 89
[48] Hb 1.1-2
[49] S1 119.105
[50] Pv 25.2
[51] 2 Co 5.7
[52] Alister McGrath, The Enigma of the Cross (Hodder e Stoughton, 1987), pp. 103-105
[53] Citado por Bruce Larson em Wind and Fire: Living Out the Book ofActs (Word, 1984), p. 11
[54] Dt 34.10; cf. Nm 12.8; Dt 3.24 {BLH)
[55] 1 Co 13.9-12
[56] 1 Jo 3.2
[57] Dt 29.29
[58] 1 Ts 4.7-8
[59] G1 5.16-26
[60] 2 Co 3.18
[61] G1 5.17
[62] 1 Jo 1.8
[63] Fp 3.12-14; 1.6
[64] Rm 7.24-25
[65] P. ex. Lv 19.2
[66] Jo 8.11
[67] 1Jo 2.1; 3.9
[68] P. ex. Rm 7.17, 20; 8.9, 11
[69] H. C. G. Moule, Thoughts on Christian Sanctity (Seeley, 1888), p. 13
[70] lbid., p. 15
[71] Ibid., p. 16.
[72] J. C. Ryle, Home Truths (Charles Thynne, 9a ed., s/d), pp 94-95
[73] 2 Co 12.12
[74] Ap 11.15
[75] Rm 8.22-23
[76] Hb 6.5
[77] 2 Co 4.10-11
[78] Ap 21.5
[79] 1 Tm 3.15
[80] Ef 2.14-15
[81] P. ex. 1 Pe 2.5, 9
[82] Ef 5.27; cf. Ap 21.2
[83] G. C. Berkouwer, op. cit., p. 138
[84] 1 Tm 6.12
[85] Ef. 4.3
[86] Mt 13.30
[87] Mt 13.38
[88] Mt 13.25
[89] Mt 13.41
[90] 2 Pe 3.13; Ap 21.1
3.7.
[92] Is 2.4

Irmãos em Cristo Jesus.

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Mt 5:14 "Vós sois a luz do mundo"